Autoria: Francielle Miranda de Matos (franciellemirandadematos@gmail.com). Revisão: Letícia Nunes da Cruz (leticianunescruz@gmail.com) e Ruann Janser Soares de Castro (ruann@unicamp.br).
Desde já, te adianto que a resposta é SIM! Mas vamos por partes. Afinal, o que são peptídeos bioativos?
Como já foi mencionando em publicações anteriores, os peptídeos bioativos são fragmentos proteicos compostos por até 20 resíduos de aminoácidos que atuam positivamente em funções biológicas, promovendo benefícios à saúde. Esses peptídeos bioativos podem apresentar propriedades antioxidantes, antidiabéticas, anti-hipertensivas, antitumorais, anti-inflamatórias, entre outras (De Castro & Sato, 2015).
Um pouco complexo, não é?! Eu explico.
Os aminoácidos são moléculas que apresentam um grupo carboxila e um grupo amino ligados a um mesmo átomo de carbono. Existem 20 tipos de aminoácidos, e estes se diferem por meio de suas cadeias laterais (grupos R). Já as proteínas são grandes moléculas formadas pela associação de aminoácidos, de modo que alterações na sequência, tipo e proporção dessas unidades monoméricas, bem como alterações no tamanho e conformação dessas cadeias polipeptídicas, podem gerar bilhões de proteínas com propriedades únicas (Nelson & Cox, 2014).
Figura 1. Organização estrutural das proteínas. Créditos: Casa das Ciências.
Além da diversidade estrutural, as proteínas desempenham diferentes funções biológicas, podendo atuar como catalisadores enzimáticos (enzimas), proteínas estruturais, hormônios (insulina), proteínas de armazenamento (albumina do ovo e proteínas dos grãos), entre outras. Desde que se considere fatores como digestibilidade, toxicidade, aspectos nutricionais, disponibilidade e fatores relacionados à produção, todas as proteínas biologicamente produzidas podem ser utilizadas na alimentação.
Os peptídeos bioativos são obtidos a partir das proteínas, por meio da quebra dessas grandes moléculas em fragmentos menores, os quais podem apresentar propriedades biológicas. A obtenção dos peptídeos pode acontecer durante processos fermentativos, através da hidrólise com proteases comerciais e durante o processo de digestão (Toldrá et al., 2018). Alguns trabalhos realizados por nosso grupo de pesquisa demonstraram que peptídeos com propriedades antidiabéticas e anti-hipertensivas podem ser obtidos da proteína do feijão carioca (Ohara et al., 2020) e de vísceras de frango (Aguilar et al., 2020), respectivamente, a partir da hidrólise com proteases comerciais. Essas propriedades também foram observadas em hidrolisados da proteína do grilo-preto, um inseto comestível.
Mas de onde vem essas propriedades antidiabéticas e anti-hipertensivas dos peptídeos?
Para responder a essa pergunta, precisamos entender um pouco sobre a Diabetes Mellitus e a hipertensão arterial.
O Diabetes Mellitus é uma doença crônica caracterizada pelo elevado nível de glicose (açúcar) no sangue. No diabetes tipo 1 há uma deficiência na produção de insulina; já no diabetes tipo 2, o pâncreas produz a insulina, mas as células do corpo não respondem adequadamente à presença desta. Em ambos os casos, o transporte da glicose para dentro das células é prejudicado (González-Montoya et al., 2018).
Figura 2. Esquema simplificado da absorção de glicose por células de pessoas saudáveis e com diabetes tipo 2. Créditos: SobrePeso.
No caso do diabetes tipo 1, o tratamento é realizado através de injeções de insulina (apesar de haver estudos relacionados à administração oral desse hormônio). E no diabetes tipo 2, o tratamento se dá pela administração de medicamentos orais que atuam na redução do nível de glicose no sangue. Além da diversidade de medicamentos disponíveis, esses podem atuar através de diferentes mecanismos (Qiangqiang et al., 2019).
Acarbose, miglitol e voglibose são exemplos de medicamentos utilizados no tratamento do diabetes tipo 1, os quais atuam como inibidores competitivos da α-glicosidase, enzima que catalisa a hidrólise sequencial de dissacarídeos e oligossacarídeos em monossacarídeos absorvíveis. Assim como estes medicamentos sintéticos, peptídeos bioativos também podem atuar inibindo a atividade da enzima α-glicosidase, bem como a atividade da α-amilase (salivar e pancreática), que hidrolisa os carboidratos de cadeia longa, diminuindo a absorção intestinal da glicose e, consequentemente, reduzindo a hiperglicemia pós-prandial (Kim et al., 2004).
Agora, falando um pouco sobre a hipertensão: trata-se de uma doença crônica, caracterizada por elevado nível de pressão arterial (igual ou superior a 140/90 mmHg). Uma enzima super importante na regulação da pressão arterial é a enzima conversora de angiotensina (ECA), presente no pulmão, cuja ação promove a vasoconstrição arterial. A ação desta enzima não é ruim para o nosso organismo; porém, em condições que favoreçam uma ação excessiva da mesma, há um efeito adverso: o aumento na pressão arterial (Aslam et al., 2019).
Figura 3. Ilustração do sistema Renina-Angiotensina, responsável pelo controle da pressão arterial. Créditos: MDS Manuals.
Medicamentos como captopril e enalapril são inibidores sintéticos da ECA e são frequentemente administrados no tratamento da hipertensão. A ação anti-hipertensiva dos peptídeos bioativos também ocorre pela capacidade dessas moléculas inibirem a atividade da ECA. Adicionalmente, alguns estudos já demonstraram que peptídeos anti-hipertensivos podem apresentar estruturas muito semelhantes aos medicamentos sintéticos (De Castro & Sato, 2015).
Figura 4. Semelhança estrutural entre drogas sintéticas utilizadas no controle da pressão arterial e peptídeos bioativos. Créditos: De Castro & Sato, 2015.
Mas se já existem medicamentos para o diabetes tipo 2 e para hipertensão, por que utilizar os peptídeos bioativos?
Boa pergunta! Os medicamentos utilizados no tratamento dessas doenças estão associados a efeitos colaterais. O uso de inibidores sintéticos da α-glicosidase podem provocar flatulência, diarreia, dores abdominais e outras disfunções. Já os medicamentos que inibem a ação da ECA podem ter como efeitos adversos a tosse seca, hipotensão, erupções cutâneas, perda do paladar, apneia do sono, entre outros. Logo, há um grande interesse na identificação de compostos naturais que auxiliem no tratamento dessas doenças crônicas (Ciau-solís et al., 2017; Wang et al., 2015). Nesse sentido, além de os peptídeos apresentarem essas bioatividades de interesse, são compostos que apresentam baixa toxicidade e tendem a não se acumular nos tecidos, apresentando também grande diversidade estrutural e baixa massa molecular (Majid & Priyadarshini, 2019).
É, parece bom. Já posso comprar?
Então... o estudo quanto às propriedades biológicas de peptídeos é bastante complexo, considerando que vários tipos de peptídeos podem ser formados durante a hidrólise. Além de detectar as propriedades bioativas dos peptídeos, é necessário identificar a estrutura das moléculas de interesse, realizar testes de alergenicidade e toxicidade, além de avaliar a presença dessas propriedades em sistemas in vivo.
Com essas informações, fica fácil de entender o porquê não é tão comum encontrar no mercado hidrolisados proteicos que usam o apelo de “produto com propriedades bioativas”.
Mas fiquem tranquilos. Nós, do Laboratório de Bioquímica de Alimentos, estamos trabalhando muito para impulsionar a utilização dos peptídeos com fins nutracêuticos. Fique com a gente e não deixe de acompanhar os avanços de nossas pesquisas!
Para maiores informações sobre os nossos trabalhos e atividades de pesquisa, conecte-se com a gente por meio dos nossos canais oficiais: · Youtube · Facebook · LinkedIn · Instagram
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