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Foto do escritor Ruann de Castro

Carne cultivada: do laboratório para o prato!


 

Autoria: Gabriela Boscariol Rasera (gabi_boscariol@hotmail.com), Letícia Nunes da Cruz (leticianunescruz@gmail.com) e Leonardo Buzaneli Cristianini (l220030@dac.unicamp.br).

Revisão: Ruann Janser Soares de Castro (ruann@unicamp.br).

 
 

Introdução

Fugiremos do absurdo de criar uma galinha inteira para comer o peito ou a asa, cultivando essas partes separadamente em meio adequado. Naturalmente, os alimentos sintéticos também serão usados ​​no futuro. Nem os prazeres da mesa precisam ser banidos (...). Os novos alimentos serão, desde o início, praticamente indistinguíveis dos produtos naturais, e quaisquer mudanças serão tão graduais que escaparão à observação.”

Foi assim que Winston Churchill, uma das figuras mais importantes da história do Reino Unido, descreveu o futuro da produção de carnes no ensaio “Fifty Years Hence” (Cinquenta anos depois), publicado na revista Strand Magazine em 1931. Winston foi, sem dúvidas, um homem do futuro, porém, talvez tenha sido um pouco otimista demais em suas predições – ou talvez nós estejamos atrasados: quarenta anos após o seu prazo, ainda estamos engatinhando na tecnologia de cultivar carnes de maneira artificial. Porém, uma coisa é certa: este conceito deixou de ser apenas uma ideia e se tornou uma alternativa em potencial ao abate de animais.

O paradoxo das proteínas

Um dos maiores desafios que enfrentamos atualmente é conseguir produzir comida para alimentar a população mundial sem sobrecarregar o meio ambiente. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que, para que a demanda de proteínas seja suprida, a produção animal deve aumentar em 70% nos próximos anos, uma vez que a população mundial cresce a cada dia. No entanto, para que o ecossistema não entre em colapso, o consumo de carnes deve ser reduzido em 75%, pois o modelo agropecuário tradicional é responsável por parte considerável do uso dos recursos naturais (ONU, 2013; GASTALDELLO et al., 2022). Além da preocupação com o meio ambiente, muitas pessoas optam por cessar ou diminuir o consumo de carnes por questões éticas acerca dos direitos dos animais.

A pecuária tradicional é responsável por grande parte do uso dos recursos naturais, além de gerar resíduos que afetam todo o ecossistema.


As proteínas alternativas são peça fundamental para resolver o paradoxo da cadeia de abastecimento de alimentos. Este grupo inclui fontes proteicas não convencionais, como vegetais, insetos comestíveis, fungos e microalgas, e as carnes artificiais, também conhecidas como carne cultivada ou carne de laboratório – uma tecnologia que engloba diversas esferas do conhecimento: tecnologia de alimentos, engenharias, ciência de materiais e biologia.

Um mercado em crescimento

Foi um cientista holandês, Mark Post, que desenvolveu a primeira carne cultivada, ainda em 2011. Dois anos depois, Mark criou o primeiro hambúrguer cultivado em laboratório, o qual foi apresentado e degustado em uma coletiva de imprensa em Londres. Desde então, mais de cem empresas envolvidas na produção de carne cultivada foram cadastradas no banco de dados do The Good Food Institute (GFI), a maioria localizada na Europa e na América do Norte. No Brasil, a atuação das empresas BRF, em parceria com a startup Aleph Farms, e da Ambi Real Food destacam-se no desenvolvimento da tecnologia.

Distribuição geográfica das empresas de carne cultivada e os principais tipos de produtos cárneos. Fonte: Adaptado de YE et al. (2022).


O mercado de carnes cultivadas foi avaliado em $1,64 milhão de dólares em 2021. Estima-se que essa cifra chegará ao valor de $2,8 bilhões de dólares em 2023, com uma taxa de crescimento de impressionantes 95,8% ao ano (YE et al., 2022)! Mas esse crescimento vai depender muito de como a tecnologia irá se desenvolver nos próximos anos. E por falar em tecnologia, em que estágio nós estamos?

A tecnologia

A tecnologia por trás do processo de produção de carnes artificiais está em constante pesquisa e desenvolvimento, possuindo diversas variáveis que podem mudar o jeito com que se obtém o produto. De modo geral, como se trata de um “cultivo”, o primeiro passo para se produzir essas carnes é obter uma “semente”, como o que ocorre para os vegetais. Só que nesse caso não é possível, já que animais e plantas são muito diferentes entre si. E agora? Como proceder?

A saída encontrada é obter uma amostra de um animal que possa ser estudada rapidamente e tenha um crescimento acelerado para se produzir carnes de uma forma rápida e com qualidade, sendo que a resposta para isso é a célula. Um detalhe importante é que antes mesmo de se recolher essa amostra, há a necessidade de um estudo aprofundado sobre o animal para se obter informações desde as vacinas que ele recebeu até a genealogia e avaliações do seu gene, sendo crucial esse estudo para garantir a qualidade da carne a ser obtida. Como essa extração de material é realizada com o animal saudável e deve garantir o bem-estar dele, ele não sofrerá nenhum dano, mas por outro lado, as condições dessa retirada são muito importantes, como o cuidado asséptico, além da definição do local de onde serão extraídas as células.

Esquema simplificado da produção de carne cultivada. Fonte: adaptado de PORTO e BERTI (2022).

Desafios e perspectivas

Como toda tecnologia emergente, os desafios que a compõem podem restringir sua comercialização. Para a produção de carne cultivada, eles se limitam a desafios tecnológicos e regulatórios, brevemente descritos nos tópicos listados abaixo (Ye et al., 2022).

- Volume limitado do biorreator: as células de mamíferos são sensíveis à agitação vigorosa, fator este que aumenta proporcionalmente com o aumento do biorreator. Assim, produção em larga escala é um desafio.

- Efluentes obtidos durante o processo: planejamento do local de fabricação, assim como processos de desintoxicação são necessários para a instalação de uma fábrica de carne cultivada.

- Cultura celular utilizada: produzir células-tronco na quantidade desejada e diferenciá-las em tecidos-alvo é um desafio, que, quando superado, não é divulgado, visto que se torna segredo comercial;

- Soro animal utilizado nos meios de cultura: para produção em larga escala, a quantidade de soro fetal bovino requerida é inacessível. Além disso, as razões éticas e ambientais da carne cultivada se perde com o seu uso. Meios de cultura sem o soro bovino já foram desenvolvidos, mas o desafio oriundo da baixa versatilidade e da maior sensibilidade às mudanças ambientais nas células ainda não foi suprido;

- Espessura da carne cultivada: quando células musculares cultivadas atingem espessura de 200 µm, começam a morrer devido à má difusão de oxigênio e nutrientes para as células internas. Assim, o uso dos chamados “scaffolds” ou andaimes com estrutura 3D podem simular a formação de vasos sanguíneos ou canais para transporte de oxigênio e nutrientes para as células internas. A segurança, sabor, preço, digestibilidade, impacto ambiental dos scaffolds são pontos desafiadores a serem vencidos;

- Qualidade da carne cultivada: Carnes cultivadas tem estrutura solta e amorfa, mastigação dificultada e sabor pouco agradável. Marmoreio e cortes tradicionais ainda não foram garantidos, assim como a presença de substâncias bioativas (fatores de crescimento e imunoglobulinas, por exemplo) não são facilmente imitadas. Além disso, a incorporação de diversos aditivos para garantir maior semelhança sensorial (suco de beterraba e açafrão, por exemplo) ou nutricional à carne tradicional também é um desafio, visto que a presença de muitos ingredientes pode desagradar o consumidor;

- Custo: Devido às limitações de produção em larga escala, o custo da carne cultivada é bastante elevado. Melhorias tecnológicas que levem à redução do preço do produto são imprescindíveis para a sua comercialização;

- Segurança: nenhum estudo aprofundado avaliando os perigos ou o seguro da carne cultivada foi realizado. As matérias-primas utilizadas, assim como os componentes das culturas de células, os carreadores, a ingestão de linhagens de células transgênicas e o processo de produção não tem histórico de uso seguro. A adição de corantes ou a presença de alérgenos também ainda não foi testada. A contaminação ou doença e a criação controlada de animais doadores de células-tronco também é um desafio de segurança. Por outro lado, vale ressaltar a relevância da carne cultivada em evitar doenças transmitidas por alimentos, uso de antibióticos e disseminação de zoonoses que podem ser causadas por consumo de carne convencional;

- Aceite do consumidor: o consumidor brasileiro ainda precisa ser estudado quanto à sua aceitação para com a carne cultivada, principalmente devido a fatores culturais. É importante salientar que um mercado sólido e mais maduro desse produto emergente pode facilitar o aceite do consumidor;

- Sistemas regulatórios: Precisam ser melhorados. A legislação brasileira está iniciando a regulamentação de Produtos derivados de Plantas. O mesmo deverá ser realizado com carne cultivada, que pode ter seu nome questionado, visto que as características nutricionais e sensoriais devem ser compatíveis com o produto cárneo convencional para que receba a mesma nomenclatura.

Diante deste contexto, segundo o GFI (PORTO e BERTI, 2022), as oportunidades de pesquisa científica abrangem projetos que investiguem linhagens celulares (principalmente células-tronco), formulação de meios de cultura específicos; mapeamento de moléculas biologicamente ativas ou agregadoras de gosto e aroma (ênfase no aproveitamento da biodiversidade brasileira); uso de subprodutos da agricultura como substratos fibrosos, saborosos e ricos em nutrientes como scaffolds; design de biorreatores teciduais e bioimpressoras eficientes para impressão 3D.

Ainda, visto a regulamentação em andamento ou já executada em outros países, a perspectiva é que as agências reguladoras do Brasil se inspirem em modelos já autorizados pelas agências reguladoras internacionais, ao mesmo tempo que avançam a quantidade de proposições inovadoras para colocar o nosso país, que é um grande produtor de proteínas, em destaque.

Assim, com um cenário promissor, a intensificação de inovação tecnológica para viabilizar a produção em larga escala é altamente recomendada para produção de carne cultivada. Da mesma forma que a criação de sistemas aprimorados de avaliação e supervisão de produtos assim como o fortalecimento da cooperação multilateral e a promoção do desenvolvimento sustentável pela indústria. A valorização e o incentivo de pesquisas científicas para suprir os desafios aqui citados também são imprescindíveis. Para tanto, o apoio governamental à indústria de carne cultivada também se torna indispensável.

Desafios e oportunidades do mercado de carne cultivada

 

Para maiores informações sobre os nossos trabalhos e atividades de pesquisa, conecte-se com a gente por meio dos nossos canais oficiais:


 

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