Autoria: Yuri Matheus Silva Amaral (yuriamaral7@gmail.com).
Revisão: Ruann Janser Soares de Castro (ruann@unicamp.br).
Homo sapiens, espécie que está inclusa na classificação taxonômica dos “grandes macacos”, junto aos chimpanzés e gorilas. Conhecidos por sua inteligência e pela dieta bastante vasta, classificada como onívora, somos capazes de metabolizar alimentos de origem animal, vegetal e até microbiana.
Então... Como explicamos a necessidade e quase dependência do ser humano em consumir carne?
Responder a esse questionamento não é uma tarefa fácil, pois ele está associado a diversos fatores sociais, fisiológicos e até mesmo emocionais. Contudo, o início da resolução desta questão parece estar relacionado com os nossos antepassados.
Enquanto primitivos, tínhamos a nossa dieta baseada principalmente em frutas e sementes, dieta esta que pode ser deficiente em proteínas. A partir do momento que os nossos ancestrais começaram a adicionar a carne à dieta, produto com alto valor energético e rico em proteínas, o corpo respondeu com mudanças fisiológicas significativas, principalmente relacionadas ao cérebro. Diversos documentos demonstram que o aumento do consumo de carne durante o período Pleistoceno (Homo erectus) levou ao desenvolvimento cefálico e do intestino dos hominídeos, mostrando uma relação com a evolução ao Homo sapiens (Leroy e Praet, 2015).
Curiosamente, foi observado que atrelado ao desenvolvimento do cérebro, houve um aumento na atividade dopaminérgica, via metabólica responsável pela produção de dopamina, hormônio que exerce influência nas emoções, como prazer e sensações de recompensa. Devido a estas mudanças evolutivas, a nossa “necessidade” em consumir carnes parece estar relacionada à vantagem energética e nutricional (alto teor de proteínas), ao qual o corpo responde sinalizando emoções de prazer e recompensa (Leroy e Praet, 2015; Dobersek et al., 2021).
Figura 1. Consumo de carne (kg/per capita) de diversos países no ano de 2021. (Fonte: OECD-FAO, 2021).
Avançando para os dias atuais, o consumo de carne continua em ascensão. De acordo com a OCDE-FAO, o consumo total de carne dos países que participam da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) foi de 71,6 kg/per capita no ano de 2021 (Figura 1), um valor 8% superior ao de 10 anos atrás, e com tendência de crescimento de 1,82% até 2029. Porém, quando olhamos o perfil de crescimento para o tipo de carne, é possível observar que a carne bovina/vitelo está com um consumo estagnado em torno de 14,4 kg/per capita desde 2011 e deve permanecer assim até 2029. Diferentemente da carne de frango, que entre 2011 e 2021 teve um aumento de 15% e deve continuar crescendo até 2029.
Os dados também mostram um comportamento que está diretamente relacionado com a capacidade produtiva; enquanto a criação de gado necessita de grande quantidade de recursos naturais (que já está no limite para o planeta), a carne de frango se torna uma alternativa para o fornecimento de proteínas, pois necessita de bem menos recursos. No entanto, com a população atingindo 8 bilhões de pessoas, a pergunta que fica é:
Até quando poderemos continuar a consumir essa quantidade de carne?
Esta pergunta está rondando os mais diversos setores da sociedade, desde ambientalistas preocupados com a situação climática, passando por governos e outras instituições que procuram soluções eficientes para garantir segurança alimentar até pesquisadores e profissionais da área de alimentos que trabalham continuamente para aprimorar sistemas de produção e fornecer alimentos em sistemas mais sustentáveis. De forma geral, a grande preocupação em reduzir o consumo de carne está associada aos impactos ambientais. Outra preocupação é o acesso à proteína de qualidade em populações mais carentes, uma vez que a redução do consumo de carne implica na substituição por uma nova fonte proteica, o que parece improvável dada a situação socioeconômica de certas regiões do globo.
Figura 2. Imagem retirada do filme Animais Fantásticos: Os crimes de Grindelwald (Fonte: Cabana do leitor, 2023).
Fato é que o consumo de carne vai, de uma forma ou de outra, ser reduzido por questões ambientais. Com a população atingindo 8 bilhões de pessoas, e com previsão de atingir 9 bilhões até 2050, a produção de alimentos e os recursos naturais terão atingido o seu limite, e o acesso aos alimentos tende a ficar cada vez mais difícil.
Impactos ambientais da pecuária
Os principais animais criados para produção de carne são gado, porco e frango. Embora haja uma grande variação do impacto ambiental que cada um desses sistemas de criação causa, é fato que todos são responsáveis por grande quantidade de emissão de gases do efeito estufa (GEE), consumo de água, uso de grande extensão territorial, contaminação do solo, dentre outros problemas ambientais (Gill, Garnsworthy e Wilkinson, 2021).
A pecuária é responsável pela geração de aproximadamente 15% de todos os gases do efeito estufa emitidos em decorrência da ação humana, sendo o metano, um dos mais preocupantes dada a sua alta produção como resultado da fermentação entérica proveniente de ruminantes (gado). Mesmo que a geração de GEE se mantenha constante, e leve ao equilíbrio do sistema climático, o que pode levar até 100 anos, a terra ainda aqueceria 0,44°C (Godfray et al., 2018).
Outro problema que intensifica ainda mais a preocupação com a geração de GEE é o uso de grande extensão territorial como pasto ou para produção de ração, o que em outras palavras resulta em desmatamento. Cerca de 50% da terra habitável é utilizada para produção de alimentos; se combinarmos o uso de terra para pastagem com a utilizada para produção de ração animal, isto representa 77% do uso de toda a terra agrícola global. Ainda neste sentido, quase um terço de toda a água doce utilizada pela atividade humana é consumida apenas pela pecuária (Aboagye et al., 2021).
Figura 3. Imagem retirada de pôster do filme Animais Fantásticos: Os segredos de Dumbledore (Fonte: Animagos, 2023).
No Brasil, 95% da carne bovina produzida é por meio de regime de pastagem, que demanda aproximadamente 167 milhões de hectares, cerca de 20% de toda a extensão territorial do país. A título de comparação, apenas 0,63% do território nacional é considerado urbano, e é onde vive 84% da população (Embrapa, 2022; Embrapa 2017).
Estes e outros problemas têm levado a sociedade a questionar a produção e o consumo de carne. Em uma pesquisa realizada por North et al., (2021), com 701 Australianos de 18-75 anos, 99 se auto declaravam como vegetarianos, 371 como veganos e 231 como onívoros. A referida pesquisa ainda mostrou que os três principais motivos para a redução no consumo de carnes foram: i) preocupação com a alimentação saudável, ii) bem-estar/direitos dos animais e iii) consciência ambiental.
Um fato curioso ligado à percepção dos consumidores com relação à alimentação à base de carnes é a associação do consumo de carne com problemas de saúde. Discussão interessante para o próximo tópico!
Mas... o consumo de carne representa riscos à saúde?
Uma das principais questões, alvo de discussão há muitos anos, e que tem levado as pessoas a reduzirem o consumo de carne, são as indicações de desenvolvimento de doenças relacionadas principalmente ao consumo de carne vermelha e de carnes processadas. Dentre os problemas de saúde onde há indícios que o consumo de carne (principalmente processada), pode ter alguma relação estão o câncer colorretal, doenças cardíacas e diabetes mellitus tipo 2 (Smet e Vossen, 2016).
Todavia, os estudos dificilmente conseguem indicar com precisão uma relação do consumo de carne vermelha e processada a estas doenças, já que tais estudos são realizados por meio de métodos de prospecção epidemiológica, onde o consumo de carne de milhares de indivíduos é acompanhado ao longo de anos e verificam uma possível relação com o desenvolvimento de doenças (Haskins, Henderson e Champ, 2018). Em diversos casos, quando se demonstra uma relação entre o alto consumo de carne vermelha e carne processada e o desenvolvimento dessas doenças, os consumidores também estão associados ao tabagismo, consumo de álcool e obesidade, sendo, portanto, difícil manter a relação direta de causa e efeito do consumo de carnes e doenças (Smet e Vossen, 2016).
Mas afinal de contas, o consumo de carnes é ou não é benéfico para a saúde?
Seja a carne bovina, de porco ou de frango, todas fornecem benefícios nutricionais em sua ingestão. Além dos benefícios fornecidos pela ingestão de fonte de proteína diária em quantidade e qualidade, há também diversos micronutrientes, como zinco, ferro, cobre, manganês e selênio, e vitaminas do complexo B que são essenciais para o bom funcionamento do organismo e manutenção de funções biológicas. Outra classe de macronutrientes importantes na alimentação humana e alvo de diversas controvérsias na carne inclui os lipídeos.
As carnes, junto aos peixes e ovos, são as principais fontes de ácidos graxos poli-insaturados ômega-3 de cadeia longa que contribuem com a prevenção e com o controle de doenças cardiovasculares. A carne, por exemplo, é a principal fonte do ácido docosapentaenóico (DPA, C22:5 n-3); esse ácido graxo tem sido apontado por diversos estudos ser tão benéfico, se não mais, que os ácidos graxos EPA e DHA (dois outros importantes ácidos graxos ômega 3). Logo, a não ingestão de carne deve ser cuidadosamente avaliada, uma vez que uma dieta equilibrada e variada de diversas outras fontes será necessária para o fornecimento adequado de nutrientes essenciais ao organismo.
Figura 4. Imagem retirada do filme: Animais fantásticos e onde Habitam (Fonte: HP, 2023). Vegetarianismo/Veganismo
Falar sobre vegetarianismo/veganismo é o exemplo mais real que podemos utilizar para demonstrar uma dieta com ausência do consumo de carne. Estima-se que pessoas veganas necessitem de um consumo de alimentos 20% superior aos onívoros para que a recomendação diária de ingestão dos nutrientes citados acima seja atingida (Dorgbetor et al., 2022).
Dentre os principais problemas relacionados ao não consumo de carne por vegetarianos/veganos está o déficit de nutrientes, fato este que pode ter uma relação direta com a maior propensão ao desenvolvimento de quadros de depressão e ansiedade (Hibbeln et al., 2018; Jacka et al., 2012).
Para além do fator nutricional, pessoas que optam pela dieta vegana/vegetariana se apoiam fortemente em fatores sociológicos, como a consciência ambiental e os direitos dos animais levando este comportamento como um estilo de vida. A prática embora louvável,deve ser cuidadosamente tratada dados os fatores nutricionais supracitados. A suplementação ou gastos adicionais com a alimentação, muitas vezes necessários, pode tornar a adoção desse estilo de vida não tão acessível para todos.
É importante notar que, onívoros podem ter as mesmas preocupações sociais que os veganos/vegetarianos, mas mantendo o consumo de carne como uma importante fonte de nutrientes.
Figura 5. Imagem retirada do pôster de divulgação do filme Animais fantásticos: Os segredos de Dumbledore (Fonte: Househogwarts, 2023).
Diante de tantos prós e contras dos tipos de alimentação possíveis, podemos afirmar que há uma indicação perfeita que atenda a todos os aspectos sociais, éticos, nutricionais...?
Equilíbrio, respeito e um olhar holístico sobre a alimentação são essenciais!
Posições extremistas são a prova de que discutir sobre assuntos polêmicos sem o devido respeito e equilíbrio é um caminho tortuoso e perigoso! Para alimentação, não é diferente! Longe de fazer julgamentos, alguns pontos essenciais devem ser considerados diante da evolução do padrão de consumo de alimentos pela humanidade:
i) o consumo de fontes proteicas de origem animal representa uma vantagem evolutiva inquestionável do ponto de vista nutricional e de desenvolvimento humano;
ii) as fontes proteicas de origem animal fornecem macro e micronutrientes essenciais para manutenção adequada da saúde do organismo;
iii) o impacto ambiental, dado o crescimento populacional, é dos principais motivos pelo qual devemos reduzir o consumo de carnes;
iv) uma dieta equilibrada à base de alimentos de diversas fontes (animal, vegetal e até microbiana) parece ser o caminho mais interessante para protegermos o meio ambiente e garantirmos o fornecimento de alimentos à crescente população mundial;
v) o respeito às opiniões, aos estilos de alimentação diferentes e o diálogo constante entre os diversos segmentos da sociedade são indispensáveis para uma alimentação consciente, para a criação de sistemas de produção mais sustentáveis e para o fornecimento de alimentos de forma igualitária e justa!
Para finalizar, retomamos o título desta matéria: “Animais fantásticos: vilões ou essenciais para a alimentação em evolução?” A resposta é toda sua!
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